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Debate na TVE - 2003

Vera Barroso - Olá! Boa noite! Hoje, vocês vão assistir aqui no Cadernos de Cinema ao filme Crioulo Doido, do diretor Carlos Alberto Prates Correia. Depois da exibição, teremos o nosso debate. Desta vez, com a participação da atriz e diretora Maria de Alves; do pesquisador de cultura popular e professor da FACHA, Luiz Fernando Vieira; do sociólogo e professor da Universidade Federal do Rio de Janeiro, Paulo Baía; do editor e crítico da revista eletrônica Contracampo, Ruy Gardnier. Antes de começar o filme, que nós já vimos, pedimos aos convidados uma orientação para o olhar de vocês. Por exemplo, Maria!

 

Maria de Alves - Prestem atenção aonde ele esquenta a comida. Logo a seguir, num posicionamento de câmera: ela dialoga com o alfaiate que está quase dormindo, vai à lâmpada e volta. É uma coisa espetacular. Prestem atenção!

 

Vera Barroso - É bem no começo. Vocês vão se preparando.

 

Maria de Alves - Vão se animando, porque é o máximo!

 

Luiz Fernando Vieira - Uma coisa que eu notei no filme foi a discriminação que a sociedade faz com as pessoas, sejam elas negras ou de baixo poder aquisitivo. Eu vou comentar depois a observação que fiz.

 

Vera Barroso - Ótimo! Paulo.

 

Paulo Baía - Olha, Vera, no filme o que chamou minha atenção, primeiro, foi a invisibilidade dos negros. Aparece Felisberto e não aparece mais negro nenhum. Salvo num flashback da história de sua vida, numa situação quase escravista. Também chamou minha atenção a maravilha da trilha sonora, que reforça a ironia com que o Carlos Alberto Prates trabalha a questão da discriminação no Brasil.

 

[Carlos Prates, em casa] - Tem mais um negro, a quem Felisberto recusou um pedido de empréstimo em sua fase de agiota. É o único solicitante que tem seu pedido recusado.

 

Vera Barroso - Gente! As dicas de hoje estão muito boas. Ruy!

 

Ruy Gardnier - Existe, mas não é tão comum, a pesquisa de linguagem no cinema brasileiro, terreno forte do Prates. Desde Crioulo Doido, onde ele começa a apurar um estilo na atuação contida dos atores, mas principalmente em sua narrativa marcada por elipses. A fotografia eu também acho impressionante. O claro estoura o tempo inteiro, ela está marcada completamente no contraste, tem pouquíssimo cinza. Acho que vale a pena o pessoal prestar atenção.

 

Vera Barroso - Um amigo meu, o Sérgio Santeiro, sempre diz que o primeiro filme dos cineastas é muito especial. Vamos ouvir a Maria, que trabalhou com o Carlos Alberto.

 

Maria de Alves - Trabalhei em Perdida e Noites do Sertão, tive esse prazer. Porque é uma honra trabalhar com o Carlos.

 

Vera Barroso - Ele é legal?

 

Maria de Alves - É maravilhoso, realmente um grande diretor. Faz a gente se sentir ator, porque ele não é óbvio.

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Luiz Fernando Vieira - Quando Felisberto chega à ante-sala do banco para pedir empréstimo, estão vagos três assentos: uma banqueta, uma cadeira e uma poltrona. Já demonstrando seus complexos perante a sociedade, ele senta na banqueta. O dono da Casa Imperial não senta na poltrona, senta na cadeira média.  E o fazendeiro, o ricaço,...

 

Vera Barroso - que sai com uma bandeja de dinheiro,...

 

Luiz Fernando Vieira - senta na poltrona e ignora completamente o alfaiate.

 

Vera Barroso - E o comerciante...

 

Luiz Fernando Vieira - Não! O comerciante ele ainda cumprimenta, mas o negro ele ignora. De repente, se dá conta de sua presença intrometida e fecha a cara para ele. O negro disfarça, para não se inferiorizar ainda mais. Eu acho isso, essa cena ele fez...

 

Vera Barroso - de maneira muito clara, com decupagem de cinema mudo.

 

Paulo Baía - Vera! Eu não tinha visto esse filme. Vi agora pela primeira vez e adorei. E me chamou atenção a maneira como o Carlos Alberto trabalha com essa linguagem do cotidiano, por meio da caricatura ou da ironia fina e mordaz. Ele mostra que há um homem negro e talentoso em ascensão social, lutando por uma identidade que ele não consegue ter. E sendo o tempo todo massacrado pelo fato de ser negro. É muito interessante como o filme vai construindo, na medida em que ele vai ascendendo, a solidão do Felisberto. Cada vez esse negro se torna mais solitário. Na cena do clube, então... E quando você diz que as mulheres são maltratadas no filme, é bom lembrar que o Carlos Alberto antecipa, em 1970, teses que a sociologia e a antropologia começam a discutir na década de 80, com a Elsa e a Laura Montinho. Elas mostraram na ocasião que no mercado matrimonial existe uma busca por homens negros que conseguem ser mantenedores e passam a atrair mulheres em busca de manutenção.

 

Vera Barroso - Mas eu não falei disso, não. Falei de outra coisa. Porque acho que a visão masculina da mulher nesse filme... Eu acho que a Maria, como mulher, sabe disso. É a visão do Carlos Alberto. A mulher ali só gosta do dinheiro. Veja o que ela diz: “- Eu não gosto de ficar sozinha! Eu quero uma máquina de lavar pratos!” Somos um pouco melhor do que isso. Mesmo aquela.

 

[Carlos Prates] - Desde a hora dançante fica evidenciado que o projeto racista de levar Felisberto à loucura é da mulher e do homem, o Amigo da Família. Agindo em nome do conjunto, a mulher às vezes cede a sinceros impulsos de alma, como diria um crítico italiano. O grande desafio para o espectador do jogo é separar esses impulsos das representações que objetivavam tão somente levar o protagonista à loucura.

 

Ruy Gardnier - A respeito da construção dos personagens, vale notar que não existe um herói. Qual é o clichê do filme de discriminação? O herói negro tem todas as qualidades. Ele é um cara impecável, forte e bem sucedido. Toda a culpa é da

sociedade, que não o suporta. Já o Felisberto parece ser um cara fraco, que aceita para si a posição que ela oferece. A única diferença é que ele quer ganhar dinheiro.

 

Paulo Baía - Só existem dois momentos em que Felisberto reage a isso. O primeiro é quando se coloca de frente à sua origem escrava, diante do personagem hippie. Então, ele é tomado de ódio. O outro, já na fazenda, quando briga com a mulher. São dois momentos em que ele se afirma enquanto pessoa. E no embate como pessoa, reage.

 

Vera Barroso - Mas ele não se sai muito bem nesse embate.

 

Luiz Fernando Vieira - Ele mostra toda a sua fragilidade, me parece que o filme retrata com exatidão o que acontece na sociedade.

 

Paulo Baía - Perfeitamente.

 

Luiz Fernando Vieira - Da mesma forma que você quer subir ainda mais, fica inibido pelos complexos que vai adquirindo a vida toda.

 

Paulo Baía - É introjetado.

 

Maria de Alves - E não aguenta. Você não aguenta porque deseja ser aquilo que não é, internamente. Então, é quando ele começa a enlouquecer. Nunca está satisfeito. A cada momento, a cada provocação quer uma coisa. Agora eu vou vender a alfaiataria, agora vou comprar a fazenda.

 

Vera Barroso - Sabe que não entendi? Afinal de contas, ele é bem sucedido ou não? Porque tem os golpes que o rondam. Não é ele quem cai no golpe dos perus. É a mulher. Eu fiquei sem entender. Ele dá certo? Ele vira agiota e dá certo.

 

Maria de Alves - Dá certo.

 

Vera Barroso - Ele vira fazendeiro, dá certo. Mas não dá tão certo porque cai nos golpes...

 

Maria de Alves - Mas ele é extremamente ingênuo.

 

[Carlos Prates] - O projeto racista do Amigo da Família se insere em uma conspiração mais ampla da sociedade branca. Quem pisa no chão bem sutil vai observar até mesmo certa cumplicidade entre Sebastiana e o Vigarista, na devolução dos perus. Quem cai no conto é o Felisberto.

 

Vera Barroso - Continuo defendendo as mulheres. Eu penso que esse filme conta a história de um casamento de interesses. Ela casa com ele, que está fixado nela, até que ela vai embora com o dinheiro.

 

Luiz Fernando Vieira - E parece que foge com aquele...

 

Maria de Alves - Com aquele que estava no armário.

 

Luiz Fernando Vieira - Com aquele compadre que estava dentro do armário.

 

Maria de Alves - Mas parece que ela gostou dele.

 

Vera Barroso - Isso que é pior.

 

[Carlos Prates] - Mas o compadre é o Amigo da Família, chefe da conspiração. Desde os tempos da varanda, Sebastiana se dividia entre ele e os amigos particulares que se renovavam a cada semana.

 

Maria de Alves – Houve um momento em que o interesse ficou de lado. Ela estava apaixonada no instante lúdico do ioiô. Nele você percebe o amor que existia entre os dois. Depois ela não aguentou mais.

 

Vera Barroso - Agora, muito esquisito... Não tem um beijo na boca.

 

Maria de Alves - É, não tem. É lúdico. Acho que o Carlos Alberto faz a parte séria e depois quebra com humor, às vezes cáustico. Ele não prolonga a seriedade.

 

Vera Barroso - Não tem uma cena de sexo, de intimidade, de contato. Faz falta!

 

[Carlos Prates] - Eu queria evitar ao máximo chamar a atenção da Censura. Meu projeto era levar o filme discretamente para Brasília, como aconteceu.

 

Maria de Alves - O Jorge está lindo! Seu trabalho é coerente do início ao fim. Ele consegue a transformação do personagem com muita classe, com muita propriedade. Ele está um verdadeiro clown. Coisa linda! É patético, patético!

 

Paulo Baía - Lá fora, o Ruy falou no olhar. Como ele estabelece uma relação na maneira de mover os olhos dentro da esperteza, nessa introjeção da inferioridade, na mudança, na busca desesperada pela identidade.

 

Ruy Gardnier - Além da crítica à discriminação racial, o filme tem a crítica do arrivismo feminino. A mulher está acompanhando o sujeito que anda com o dinheiro. É o poder da ganância mesmo. É o poder da ganância estúpida porque, quando o sujeito fala que o mundo vai acabar; quando ele acredita que o mundo vai acabar, sua preocupação é conseguir mais dinheiro antes que o mundo acabe. Então, vira uma coisa meio absurda. A preocupação dele não é aproveitar a vida enquanto pode, é conseguir acumular o máximo possível.

 

Paulo Baía - Esta frase é fantástica: - Tem que arranjar um jeito de ganhar dinheiro depressa, antes de a Terra virar fogo.

 

Maria de Alves - É auto-afirmação. Ele quer ser aceito e não consegue. Porque é rico e rejeitado. Naquele momento em que ele está na praça...

 

Vera Barroso - Ele tenta se enturmar...

 

Paulo Baía - Vera, me deixa voltar à questão da década de 70, quando o filme não foi exibido, não foi distribuído. Ele faz a crítica da revolução, na época! .

 

Ruy Gardnier – Bom, eu ia falar das mulheres. Convém lembrar que depois do Crioulo o Prates fez Perdida, que obviamente não coloca a mulher como um ser redentor, mas está longe de ser o reflexo apenas de um lado.

 

Luiz Fernando Vieira – Voltamos assim à emancipação da mulher, Sebastiana esteve diversas vezes na varanda.

 

Paulo Baía - Tirando um pouquinho o foco do Felisberto, a Selma deu um show. Ela é uma craque, bonita...

 

Vera Barroso - Sensual.

 

Paulo Baía - Sensual.

 

Vera Barroso - E com a mesma alegria do Jorge Coutinho.

 

Paulo Baía - E o jogo de face que ela faz, tanto na hora em que percebe qual é o seu caminho ao tomar conhecimento da riqueza do crioulo, quanto na cena final, quando vai embora com a mala de dinheiro. “- Não é só vontade, Beto, agora é precisão.” É genial!

 

Ruy Gardnier - Uma coisa precisa ser dita. Em torno do golpe de 68 só se falou e se tratou da revolução por parábolas. Crioulo Doido não, esse colocou a realidade em gravações radiofônicas. É curiosíssimo, é impressionante!

 

Luiz Fernando Vieira - Ai daquele que não falasse por parábolas!

 

Vera Barroso - Revolução é coisa do Rio, de São Paulo, de cidade grande... Esse não falou!

 

Paulo Baía - Vera! O que mais me deixou impressionado foi exatamente a capacidade do Carlos Alberto de, pela cena, pelo silêncio, ser um crítico mordaz. E tem a questão do racismo, dos obstáculos à mobilidade social no Brasil. O filme é primoroso neste sentido. É uma obra fantástica, que todos devem assistir.

 

Luiz Fernando Vieira - Ela mostra que, quando a gente tenta ascender socialmente, ou não consegue ou é massacrado pela loucura.

 

Paulo Baía - É massacrado ou jogado para o ilícito, onde pode ser bem recebido. Mas dentro das regras da sociedade, é massacrado.

 

Luiz Fernando Vieira - O capitalismo faz isso. Ele enlouquece.

 

Paulo Baía - Enlouquece e faz perder a identidade, não deixa construir a identidade.

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