Juventude
FILMECULTURA: - Como você vê o lugar do teu cinema nos dias de hoje – queria saber se observa relações com algo que alguém mais ande fazendo.
CARLOS ALBERTO: - Não vejo agora, nem nunca vi, relações do meu cinema com algo que alguém mais ande fazendo, mas pode ser que elas existam. Essa pretensão à originalidade já teve que ultrapassar obstáculos: quando terminei o roteiro de Minas Texas, por exemplo, fui ver um filme de Almodóvar e me deparei na tela com a dublagem de Johnny Guitar para o castelhano, justamente da cena que sob forma de paródia eu tinha incluído em meu roteiro. Fiquei constrangido e a substituí. Pelo menos uma década depois ligo a TV e vejo uma cena de outro filme dele, com a mesma gravação de uma música da trilha de Perdida, que ele certamente não viu. Apesar das coincidências, não me sinto relacionado a Pedro Almodóvar, é claro.
FUNDO SETORIAL: - Depois de um filme memorialístico como Castelar e Nelson Dantas, você tem novos projetos de filmes em vista?
CARLOS ALBERTO: - Tenho, mas todos que realizei até hoje são de alguma forma memorialísticos. Não autobiográficos, como às vezes se considera o roteiro de Terra de Grande Beleza, meu novo projeto. A determinação de Lollô denota uma semelhança insignificante com a de Dilma Rousseff. A trajetória de Burt lembra pouco a de Carlos Alberto Soares de Freitas, o Beto, meu colega do curso de Sociologia assassinado pela Ditadura na famigerada Casa da Morte.
- Beto foi a única pessoa mais próxima que conheci a participar da luta armada e a minha 1ª mulher, segundo fui informado, era amiga da atual presidente, talvez a única que ela tinha na guerrilha. Se o roteiro fosse autobiográfico, Dilma (ou Lollô) seria na verdade uma devoradora de homens, uma ninfomaníaca, e o Beto (ou Burt) não chegaria ao fim torturado em Petrópolis mas sim assassinado por uma lésbica ciumenta, anos mais tarde, no Rio de Janeiro. O que não coincide exatamente com os fatos históricos amplamente divulgados pela imprensa. Num 1º tratamento do roteiro, é fato, havia um episódio efetivamente ocorrido. Eu e o Beto estudávamos de madrugada em meu apartamento, às vésperas de uma prova. Eu fui ao banheiro e o deixei conversando com minha mãe. Quando voltei, ele estava em cima da mesa, inflamado, discursando para ela algum trecho de Fidel.
- Minha mãe era amiga de Juscelino, cunhada de dois ex-prefeitos do PSD, mas, encantada com a oratória do Beto, não parava de repetir que em 45 tinha votado no Yedo Fiúza, candidato do Partido Comunista contra o Dutra. No 2º tratamento cortei a sequência para eliminar do roteiro qualquer compromisso biográfico mais relevante. Mantive, no entanto, duas ocorrências, por estarem próximas da inverossimilhança. A do oficial comunista da FEB que deglutiu três italianas (avó, mãe e filha) e a do embate gastronômico de uma atriz francesa com Antônio Joaquim, devido a uma salada de feijão fradinho mal preparada em filmagens ocorridas na verdade em Alagoas. O resto é ficção.
FILMECULTURA: - A partir dessa questão, um desdobramento: o que te interessa mais filmar nos dias de hoje?
CARLOS ALBERTO: - Um outro lado do enredo me atrai igualmente: Terra de Grande Beleza é também a memória de um segmento da população de Minas que fazia da mudança para o Rio o grande sonho de sua vida.
FILMECULTURA: - Com relação à difusão dos seus filmes, li a respeito sobre os planos de lançar uma caixa de DVDs. Não sei se a notícia estava correta, gostaria de averiguar isso contigo e saber o que existe sobre o assunto.
CARLOS ALBERTO: - A restauração em beta digital já se realizou, com recursos próprios. Aproveitei a oportunidade para fazer alguns cortes. O mais importante, contudo, foi reeditar o som de todos. No processo, ouvi diálogos, ruídos e instrumentos musicais que tinham se despedido na mixagem e desaparecido no ótico. Cortei planos deteriorados, tornei letreiros legíveis, dei um acabamento aos filmes que eles nunca tiveram, fazendo inclusive novas telecinagens. Depois eles foram exibidos, em beta analógica, na mostra do Forumdoc.BH e no Canal Brasil. Agora em abril vão constituir a minha retrospectiva no BAFICI (Buenos Aires). Mas o interesse maior da casa, de fato, é o lançamento em DVD, que ainda não aconteceu.
FILMECULTURA: - Esta seção de entrevistas termina com uma lista feita pelo entrevistado de 10 “filmes faróis”, aqueles que fizeram a tua cabeça ou influenciaram profundamente o teu cinema.
CARLOS ALBERTO: - Sinto muito mas no meu caso esses filmes não existem. Percorri sempre a estrada escura com uma lanterninha, sem saber se chegaria a algum destino. Em todo caso, posso falar de alguns que influíram, ligeiramente, na construção dos meus:
1 – Chicoteada – Genival Tourinho (futuro deputado), aos 18, e Maurício Gomes Leite (crítico e futuro cineasta), aos 15, subiam a Rua Camilo Prates na direção do Cine Coronel Ribeiro para ver Barba Azul, com Cécile Aubry (impróprio até 18), achando graça da minha petulância quando eu me encontrei com eles, aos 10, perseguindo o mesmo objetivo. Não sabiam que meu tio, representante do juiz de menores na porta dos cinemas, facilitava minha entrada e do primo Felisberto em filmes de qualquer impropriedade, menos os proibidos, como Esquina do Pecado.
Pelo menos em Montes Claros havia diferença entre impróprio e proibido.
Foi por isso que consegui ver o obscuro Chicoteada, passado nos Alpes suíços, um filme que provavelmente Guimarães Rosa também viu antes de imaginar Diadorim.
2 – A Última Vez que Vi Paris – Eu não sabia o que era amor, não entendia Casablanca, que tanto agradava à minha mãe. Fui estudar num colégio interno, em Juiz de Fora, onde, aos 12, vi o Festival da Metro e parece que aprendi - com Scott Fitzgerald, Richard Brooks e, principalmente, Elizabeth Taylor.
Mandei até carta para ela, que mandou como resposta foto lindíssima e dedicatória afetiva, mas lacônica. Considerei logo extinta a possibilidade de qualquer relacionamento.
Anos depois, filmei em Perdida uma sequência com Helber Rangel tentando reproduzir o infindável sofrimento de Van Johnson no filme do Brooks diante da morte de Liz.
Não sei se ela entendeu como tal a minha declaração de amor.
3 – Picnic – Em Belo Horizonte, Férias de Amor. O dorso nu de William Holden, queimando lixo, subvertia a ordem. Kim Novak desce as escadas do picnic ao som de Moonglow. “Eles estão tomando banho nus no lago”, se dizia mais tarde a respeito da nova mania de Hollywood. Havia Faulkner no ar, cinesmascope, som estereofônico. Kim Novak me enlouquece mas não consigo transmitir para o curta-metragem que escrevo sua sensualidade arrebatadora.
4 – Vidas Secas – Juvenil, saio da sessão especial convencido de que o sertão verdadeiro estava ali, na tela grande do Cine Palladium, sem a falcatrua do cangaço, da jagunçada. Na sala de espera ouço a viúva de Graciliano dizer que a miséria era a indiscutível grandeza da nação. Fico perplexo e concluo que nada mais havia a fazer a partir daquele assunto, através daquela linguagem. Apego-me inconscientemente apenas ao desejo de filmar um dia com Maria Ribeiro, a protagonista.
5 – Contos da Lua Vaga - Depois do sucesso de Macunaíma, Joaquim Pedro resolve produzir Cidadão Cana para mim, com Grande Otelo no papel inspirado em Adolfo Bloch, construtor de um império jornalístico atormentado por sua estatura muito baixa. Comecei a esboçar o roteiro com ele, mas logo na 1ª reunião percebi que a realização cairia fatalmente num viés tropicalista, que não me agradava de todo – e cada um foi para seu lado. O que eu desejava era cruzar racismo com ascensão social citando os Contos da Lua Vaga. O que me interessava era contar os sonhos de Poder daquele alfaiate e a busca da sua Princesa Wasaka, que precederam a loucura que o dominou.
6 – Ano Passado em Marienbad – Escrevi algumas críticas sobre o filme, chegando até a explicar sua montagem através do jogo de palitinhos chinês. Tempos depois, eu varava as madrugadas com um colega, militante da POLOP, tomando perventin para estudar sociologia e fazer prova no dia seguinte. Numa delas, ele me confessou que preferia Os Companheiros à obra-prima de Alain Resnais, mas notei que ele estava mesmo era se divertindo com a minha alucinação, recebendo em troca por sua avaliação errônea minha afetuosa e superior compreensão.
7 – A Adolescente – De Buñuel só tinha visto Robinson Crusoé, na infância, e me lembrava pouco, de forma que ficava meio deslocado à mesa do bar quando se falava de surrealismo, mesmo sendo leitor até frequente da revista Positif. Achava curioso o folclore que atribuía a ele o ato de chutar a câmera, antes de rodar o plano, enquanto seu operador ajustava o enquadramento. A Adolescente me apresentou um diretor que eu não esperava, primeiro porque sua escrita trazia poucas lembranças do surrealismo, depois porque os enquadramentos do filme eram rigorosos e iluminados com primor por Figueroa.
8 – A Grande Ilusão – Chego em Montes Claros e me encontro com João Luiz Lafetá, meu primo, no Mangueirinha. Acabo de pagar a dívida de Crioulo Doido. Ele vem de São Paulo, onde dá aulas de literatura. Eu falo que fiz o pior filme da história do cinema, que ele viu na Cinemateca e gostou. Informo que vou ser produtor executivo daqui pra frente e ele tem um trabalho danado para me convencer do contrário, elogia algumas cenas, analisa, fala da boa repercussão. Com mais algumas doses vou me reerguendo, aceitando suas ponderações, ganhando ânimo. Ele só faz uma pequena restrição, devido à sinuosidade do meu estilo, mas aí eu já estou forte e digo que meu modelo foi A Grande Ilusão, de Renoir, descarto a crítica e começo naquela mesma noite a escrever o sinuosíssimo roteiro de Perdida.
9 – O Tesouro da Sierra Madre – Fui rever no Paissandu antes de filmar Minas Texas. Mais por causa de Tim Holt, que sempre foi meu cowboy favorito. Fiquei surpreso com a exata movimentação da narrativa, destituída de travellings viciosos que apenas enfeitam a cinematografia praticada nos últimos decênios. Eliminei então o maquinista do meu orçamento, retornando à simplicidade de uma câmera sustentada por um bom tripé, como em meus primeiros filmes. Ganhei de bônus a cena com um delirante Walter Huston vendo o ouro em pó se espalhar pela ação do vento, para usar a gosto em Terra de Grande Beleza.
10 – Intriga Internacional – Diante dos novos tempos, hesito em conservar intocáveis os componentes de um estilo que inclui certo humor, o olhar na direção das mulheres e a presença do trem. Os filmes desprovidos de trem me causam grande enfado, chego a pensar que eles não mereciam ser feitos. Em Crioulo Doido, que reeditei há pouco, ocorria essa lacuna. A personagem era filha de um ferroviário, mas não havia a imagem do trem porque a linha férrea fora desativada em Sabará, a locação. Aproveitei a oportunidade e na trilha sonora usei com desenvoltura o inolvidável ruído de uma locomotiva chegando à estação. O filme virou outra coisa.