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Noites do Sertão, 1983

   Belo Horizonte, 1950. Desquitada de Irvino, que fugiu com outra mulher, a bela e frágil Lalinha vai viver na fazenda Buriti Bom com as duas cunhadas e o sogro viúvo.

   A amizade da família a conforta e aos poucos ela conhece a gente do lugar. O veterinário Miguel chega para vacinar o gado e desperta o amor da mais nova. Quando ele parte, uma inesperada trama libidinal se estabelece, Maria Behú morre e Lalinha volta para a cidade, deixando por lá Iô Liodoro e a linda Glória dos cabelos em quantidade de sol.

 

   O verdadeiro amor é um calafrio doce, um susto sem perigos.

 

Produção - Sertaneja de Cinema (ex-Cinematográfica Montesclarense) e Grupo Novo, Colorido, 87’, 1:33.

 

23 prêmios nos mais importantes festivais do país e no exterior (Gramado, Brasília, Caxambu e Cartagena 1984, Air France 1985). Participação em mostras e festivais de Locarno, Montreal e São Paulo 1984, Forum de Berlim e Figueira da Foz 1985, Argélia (Imagens de mulheres) e Tóquio 1986.

 

Elenco - Cristina Aché (Lalinha), Débora Bloch (Maria da Glória), Carlos Kroeber (Iô Liodoro), Carlos Wilson (Nhô Gualberto),Tony Ramos (Miguel), Milton Nascimento (Chefe Zequiel), Sura Berditchevsky (Maria Behú), Maria Silvia (Dona-Dona), Hileana Meneses (Dionéia), Ruy Polanah (Inspetor), Tavinho Moura (Violonista), Marcos Palmeira (Norilúcio), Maria Alves (Dô-Nhã), Cláudia Campos (Alcina). Narração de Antônio Grassi. Participantes da 1ª versão: Álvaro Freire, Antônio Grassi, Socorro Vieira, Teuda Magalhães e Manoelzão.

 

Roteiro - Carlos Alberto Prates Correia  (baseado na novela Buriti, de Guimarães Rosa).

 

Equipe - Diretor de fotografia – Tadeu Ribeiro, Cenografia e figurino – Anísio Medeiros, Montagem –  Amaury Alves e Idê Lacreta  _  Música - Tavinho Moura, Som direto – Romeu Quinto, Produtores associados – Embrafilme, Cinefilmes e Skylight, Produtores executivos – Tarcísio Vidigal e Helvécio Ratton, Diretora de produção – Diana Vasconcellos, Assistentes de direção – Helber Rangel e Tavinho Moura, Continuísta – Érica Bauer, Assistentes de fotografia – Carlos Azambuja, Fernando Camargos, Magro Quinaud e Álvaro Nobre, Fotos de cena – Inês Rabelo, Assistente de som – Lício Marcos, Assistentes de cenografia e figurino – Patrícia Vasconcellos e Regina Campelo, Assistentes de produção – Claudia Brasil, Claudia Guimarães, Paulo Valadares, Marco Antônio Simas e Guilherme Ricardo, Equipe de preparação – Nilson Barbosa, Marcus Lage, Marcelo Brum e Hilda Borém, Coreografia da fogueira – Isabel Costa, Maquinistas e eletricistas – Joaquim Azevedo, Oziel Tomé, Otávio Cachapuz, Eustáquio Bento, Paulo Roberto de Souza, Geradoristas – Geraldo Silva e Celso Almeida, Equipe de montagem – Ney Fernandes, Hercília Cardillo, Lewis Beltrão, Ana Diniz e Mário Murakami, Laboratório – Líder, Transcrições – Rob Filmes, Estúdio – Barrozo Netto, Mixagem – Aloísio Viana, Trucagens e letreiros – Ilimitada

 

Direção - Carlos Alberto Prates Correia.

 

Débora Bloch - Maravilha: vilhamara!

Tony Ramos

Textos e artigos:

Uma respiração noturna

 

   Noites do Sertão desenvolve (e, simultaneamente, simplifica) uma ficção de Guimarães Rosa intitulada Buriti, publicada em 56 no livro Corpo de Baile. O trabalho de Prates Correia consistiu fundamentalmente em externalizar todos os acontecimentos, isto é, em colocá-los numa espécie de realidade off. Os episódios decisivos ou já aconteceram, ou acontecem num exterior que só de um modo sutil e indireto afetam as personagens que se encontram na fazenda do Buriti Bom. É a separação entre Lala e o marido. É o convite que o sogro de Lala lhe faz para ir com ela para lá – deixando para trás a poeira do passado. É o fato de o antigo marido de Lala arranjar uma amante de quem tem um filho. É a expectativa de que Miguel regresse à fazenda. Mas isto não é o mais importante: o passado fica exterior ao sertão (“A vida não tem passado”), e o futuro também, e desta dupla supressão resulta uma espécie de presente eterno – a selva, o ruídos dos pássaros, a ronda das falas e das melodias, a noite do sertão, a sua respiração noturna.

   A arte de Prates Correia consiste, primeiro, em traçar a evidente circularidade deste universo (como que a incidência mágica que deriva da sombra da palmeira buriti) e, depois, em dar-lhe uma vibratilidade interminável, fazendo propagar neste campo noturno linhas de estremecimento, arrepio, espanto, terror, deslumbramento ou êxtase. Se nada aparentemente acontece, é porque tudo se situa num plano de expectativa (Breton: “C’est l’attente qui est magnifique”), mas seria preciso uma enorme desatenção para não nos darmos conta da fascinante teia de atrações e repulsas que o filme vai construindo com uma inesperada sageza estética.

   Observemos desde já que há em Prates Correia um grande saber da decomposição e recomposição que faz com que a montagem deste filme seja, em todos os níveis, uma espécie de polifonia abstrata: há o refazer permanente de um quadro em que se combinam vozes, gestos, restos de falas anteriores, blocos melódicos, pedaços de monólogos interiores, comentários aparentemente neutros, tudo isto convocado segundo princípios de articulação que estão mais próximos da textualidade poética do que da sintaxe narrativa. O que é espantoso é que, apesar de tudo, alguma coisa se move nesta trama aparentemente suspensa, e esse movimento, que é sempre o do desejo na sua dimensão mais profunda e envolvente, produz a aproximação entre Glória (uma espantosa Débora Bloch) e Miguel, entre Glória e Gual, entre Glória e Lala, entre Lala e o sogro Iô Liodoro ou, mais dissimuladamente, entre a religiosidade magoada, recalcada e pisada da irmã de Glória, e os terrores noturnos do Chefe Zequiel (numa curiosíssima criação de Milton Nascimento). 

   Quando o filme termina, sabemos que tudo ficou diferente e, contudo, o filme não foi mais do que a ardilosa disseminação dessa diferença. Cada um libertou-se de uma forma de tensão interior: Miguel regressa, Iô Liodoro conheceu o corpo desejado de Lala (tantas vezes descrito, noite após noite, em magníficas cenas de perversidade verbal), Glória e Lala atravessaram sem drama o equilíbrio homossexual em que por momentos se encontraram (e que proporcionou no filme o que o crítico brasileiro Geraldo Mayrink considerou “a mais bela sequência erótica do cinema brasileiro”), Maria Behú acabou por morrer e o Chefe Zequiel pôde por fim dormir. É, talvez, um saber antigo que se transmite. Algo que o cinema de Prates Correia pretende ensinar a acolher: um bafo, um sopro, um segredo, um dizer ciciado, um restolhar de pássaros, o sangue dos animais, um galope noturno. Somos afinal como esses caçadores que, em torno de uma fogueira, se entretêm a desenredar a espessa teia de crepitações, vozes, murmúrios e gritos abafados das noites do sertão.

 

(Eduardo Prado Coelho – Expresso – Lisboa – 1988)

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