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O TEMPO (Marcelo Miranda) - A produção em Minas Gerais teve um vigor muito particular, muito próprio. Ela quase sempre esteve afastada dos grandes centros, do eixo Rio-SP, reproduzindo um pouco o isolamento do estado no meio das montanhas. O senhor teve importância fundamental nesse processo. Como era trabalhar com cinema em Minas dos anos 60 aos 80?
CARLOS - Desculpe, mas o senhor está partindo de pressupostos inexatos. A produção em Minas foi sempre anêmica e quase sempre ligada ao Rio de Janeiro, pelo menos no período da ditadura enfocado por Castelar. Dos 14 longas-metragens mencionados no filme, apenas Crioulo Doido e O Homem do Corpo Fechado foram produzidos por empresas sediadas em Minas. A gente nascia ou era de família mineira, se ilustrava no estado e ia para o Rio lutar pelo dinheiro na CAIC (órgão da Guanabara), Embrafilme (órgão federal) e voltava para filmar em Montes Claros, Diamantina, ou montava um cenário mineiro em Copacabana e nos subúrbios cariocas, como fiz em Perdida para diminuir os custos de produção. Pois os governos de Minas, pelo menos no meu caso, nunca entraram com um centavo e não entram até hoje. A não ser que o senhor considere o empréstimo do BDMG para a produção de Crioulo Doido, que paguei durante anos com juros e correção monetária.
FORUMDOC.BH (Frederico Sabino, Claudia Mesquita e Jair Fonseca) - Seus filmes são muito musicais. Crioulo Doido é cheio de incidências musicais, a canção usada como comentário – geralmente irônico – à cena. Perdida também faz isso, além de colocar o compositor em quadro, procedimento que você passa a utilizar em todos os filmes, com Tavinho Moura “personificando” a música. Cabaret Mineiro é musical de cabo a rabo, quase uma montagem de segmentos organizados de diferentes modos pela música, espécie de leitmotiv do filme (neste, a presença da música popular tradicional do Norte de Minas se faz mais forte). Poderia comentar esses aspectos?
CARLOS - A influência era do jazz, que eu ouvia com os primos no sobrado da Praça da Matriz, em Montes Claros. Já no sítio de Joaquim José da Costa Jr. havia muito Noel, mas ele mantinha às suas custas o genial Zezinho da Viola (e 10 filhos) para ouvir os seus acordes quando chegava do trabalho e abria uma garrafa de uísque. Tive o privilégio de ouvir Zezinho tocando algumas vezes só para mim. Os 200 convidados iam almoçar e ele ficava na beira da piscina tosca, tocando. Dessa forma, meus filmes não poderiam deixar de ser intensamente musicais. O ídolo, no entanto, era Antônio Rodrigues. Parceiro de pôquer, cantor e contador de histórias, ele atuou em Crioulo Doido, Cabaret e Minas Texas. A ironia que vocês identificam em minhas realizações cinematográficas não tem a mesma altitude que a dele, mas lhe deve algum tributo. Mais tarde entrou Tavinho, que era meu amigo e compositor do Schubert. A trilha de Perdida estava praticamente pronta quando ele chegou para cantar A véia, de Zezinho da Viola. Tavinho cantou e abafou, tanto que eu aumentei sua participação quando ouvi os arranjos que ele fez para outras composições do violeiro da Vargem Grande. Curioso é que no Cabaret todas aquelas músicas vieram da minha juventude, minha infância, mas parecem ter nascido de Tavinho, que nem é sertanejo, como eu. Apesar dessa grande intimidade, eu acho que o filme poderia ser muito bem construído por outros músicos e cineastas. Poderia ter até outra marujada, mas não seria o mesmo sem a presença de Antônio Rodrigues.
FORUMDOC - Crioulo Doido foi uma surpresa e tanto. Talvez você não goste das aproximações, mas lembramos de Brecht (talvez via Godard) e de Machado de Assis. Machadiano: uma história de racismo e ascensão social, um personagem cuja trajetória expõe agudamente as contradições e rachaduras da sociedade num momento histórico (sempre pela via da ironia). Brechtiano: sempre “desnaturalizando” o “natural”, através da música e dos sons (montagem vertical), das composições de quadros (ironias visuais), das atuações e diálogos, dos letreiros. E também: uma história do capital, do vil metal, em que se misturam na cena amor e dinheiro, “sublime” e ordinário. Pode comentar essas aproximações e outras que quiser?
CARLOS - Aproximações é uma boa palavra. Posso não gostar de análises descabidas quando leio que meus filmes sofreram influência da poesia fescenina de Bernardo Guimarães, que eu desconhecia até o final do século passado, que eles descendem da obra de Carlos Drummond, por causa do poema de Cabaret, ou do próprio Joaquim Pedro, a quem devo pouco mais que uma sólida amizade e o impulso inicial de Crioulo Doido. Depois do sucesso de Macunaíma, Joaquim resolveu produzir Cidadão Cana para mim, com Grande Otelo no papel inspirado em Adolfo Bloch, construtor de um império jornalístico atormentado por sua estatura muito baixa. Comecei a esboçar o roteiro com ele, mas logo na 1ª reunião percebi que a realização cairia fatalmente num viés tropicalista, que não me agradava de todo – e cada um foi para seu lado. O que eu desejava era cruzar racismo com ascensão social citando Os Contos da Lua Vaga. O que me interessava era contar os sonhos de Poder daquele alfaiate e a busca de sua Princesa Wasaka, que precederam a loucura que o dominou. Mas não desqualifico os comentários de vocês, pelo contrário. São aproximações, como foi dito muito bem.
O TEMPO - Entrando na mineiridade, o senhor fez jus à origem e sempre se manteve fora da badalação. Poucas entrevistas, pouco contato com público ou crítica... Houve um motivo para isso?
CARLOS - Um filme deve ser composto de cenas que se encadeiam durante 70, 90 minutos. O acréscimo efetuado nas entrevistas sempre me pareceu em demasia – quebra o encanto. Mas especialistas na palavra (são raros) às vezes conseguem aumentar seu interesse, principalmente se há o “estímulo” de quem dialoga com eles. Bazin e Orson Welles num hotel parisiense tornam Soberba ainda mais brilhante. Na literatura, Günter Lorenz e Guimarães Rosa trazem à tona todos os surubins do São Francisco para ouvir o que eles estão falando...
FORUMDOC - Notamos alguma “continuidade” ou coerência na passagem de Ladeira a Estela/Janete (Perdida). Personagens marginalizadas, cujas experiências encarnam contradições maiores. De novo, pela ironia, você se distancia delas, evitando “dramatizar” o que já é dramático (embora Estela, com o olhar tão triste, conserve seu drama e seu mistério, e não permita sempre o riso). Você concorda? Poderia falar sobre essas personagens? Como elas se relacionam (personagens inventadas) com sua experiência (personagens reais que você conheceu)?
CARLOS - Felisberto Ladeira veio de Soares das Canetas (que era branco e executava consertos) e de um enredo originalmente intitulado O Mundo vai Acabar. Não conheci Soares, mas sei que ele se iguala a Felisberto apenas por seu caráter de ingênuo inveterado, sem os sonhos e a ambição do colorido. A espera pelo fim do mundo é que também o enlouqueceu, o resto é invenção pura, ou derivada de fragmentos da minha experiência a serviço de idéias que eu desejava colocar em narrativa. Estela veio de muita gente. Aquela história não ocorreu de maneira tão inconsútil, mas poderia ter ocorrido. É meu filme mais próximo da realidade, vista aqui de maneira algo romântica para escapar dos olhos da ditadura. Seus episódios foram testemunhados ou vividos, na zona, na pensão das operárias, nos restaurantes de beira de estrada. Perdida nasceu de um pedido da minha 1ª mulher, Mariza, que pugnava por estéticas mais envolventes e terminou a vida em grande desventura.
HOJE EM DIA (Paulo Henrique Silva) – Alguns filmes realizados em Minas ficaram de fora do documentário Castelar, como os de David Neves e Maurício Gomes Leite.
CARLOS – Mas a carta do Maurício ficou dentro, servindo de compensação. E o flash de Adriana Prieto define bem o David, só faltou a narradora. O episódio do louva-a-deus passou no princípio como um contato mais direto com a natureza. Helena e Rosa não sabiam que a fêmea daquela espécie de inseto devora o macho logo depois do amor. Mais tarde, quando descobriu isso, Helena elegeu o louva-a-deus como símbolo da superioridade feminina.
O TEMPO - A sua obra como diretor, mesmo curta, é extremamente significativa e reconhecida como o último sopro de grandes idéias em Minas Gerais. A mineiridade era um objetivo na hora de escolher ou desenvolver um projeto?
CARLOS - Curta como se, apesar das barreiras, ninguém fez mais filmes "mineiros" do que eu? Mesmo em termos nacionais, diversos cineastas de grande envergadura não ultrapassaram a minha marca. Sou maioral na extensão, mas jamais me impute a responsabilidade por grandes idéias! Deixe esta pessoa no seu canto. A decantada mineiridade pode ter sido no máximo um objetivo inconsciente na escolha de meus projetos: eles nasceram do sonho com um bispo
(O Milagre de Lourdes), da necessidade de me inserir num ambiente temático composto por outro episódio (Os Marginais), da necessidade irrefreável de citar Mizoguchi cruzando racismo com ascensão social (Crioulo Doido), de transgredir o modelo da ditadura das reconstituições históricas e adaptações literárias (Perdida), de cantar com a minha voz cinematográfica as músicas que aprendi em Montes Claros (Cabaret Mineiro), de difundir a estupenda maquinaria verbal do Rosa (Noites do Sertão), de contar para os outros tudo que Antônio Rodrigues me contava jogando pôquer (Minas Texas) e de promover o inventário de bens com certo valor deixados por alguns cinéfilos e cineastas em sua passagem por Minas (Castelar e Nelson Dantas no País dos Generais).
O erotômano de Itabira
- Que maluquice é essa? Quando é que adaptei Carlos Drummond? O Cabaret nem tinha esse nome, era O Aventureiro do São Francisco, com Milton Gontijo no papel de Paixão. O pai dele morreu às vésperas da filmagem e Nelson Dantas o substituiu, deixando sua psicanálise no Rio para se atormentar com as beldades de Minas. Eu apenas pedi ao Tavinho para musicar o poema em que o erotômano de Itabira se refere à dançarina espanhola, provavelmente por informação do jornalista Newton Prates, do escritor Cyro dos Anjos, ou porque andou pela cidade. No esplendor da construção da ferrovia, segundo o meu avô, Montes Claros tinha 10% da população composta de prostitutas!
Na madrugada de um réveillon em torno de 57, desculpe a forma de Zola: já em franca decadência, estirada na lama com sua estola de pele, uma remanescente daquele período áureo emborcava uma garrafa de cachaça Claudionor. Eu vi. Era bem garoto e passava pela rua do cassino, de summer jack, fumando charuto.
Sertanejo do meu Coração
Com o fechamento da Embrafilme, em 90, voltei para Montes Claros e construí uma casa. Lá ficaria um tempo trabalhando num roteiro novo, depois a venderia, quem sabe até com lucro para investir no filme. Súbito, enxames de marabuntas começaram a invadir a casa me obrigando a vendê-la pela metade do preço. Movido pelo desejo de me tornar um personagem rosiano, comprei gado e chapéu de couro. Perdi o gado e com o chapéu viajei para o Rio, onde me procurou o Paulinho Ribeiro querendo produzir um filme sobre a vida do Brizola, contada por Darcy Ribeiro, tio dele. O filme seria dirigido por mim. Relutei intimamente em aceitar o convite mas liguei para o Darcy, que eu não conhecia, uma assessora atendeu, perguntou quem desejava. Fiquei mudo. Cantos de guerra indígenas, inicialmente distantes, tornaram-se ensurdecedores em meus ouvidos. Desliguei num átimo. Meu avô paterno, agora mesmo no século XX, foi morto e comido pelos índios, só deixaram os ossos. Preferi não correr novos riscos e desisti da parceria. Depois veio o câncer, que descobri urinando sangue na frente do lindíssimo mar azul que contorna a Fortaleza de Santa Cruz, durante a escolha dos cenários para o 1º tratamento de Sertanejo do meu Coração. A operação foi bem sucedida. Peguei, no entanto, o mal do Chefe Zequiel e não durmo faz cinco anos. Apesar da seqüela, escrevi um 2º tratamento, ganhei um concurso de roteiros e outro de projetos, mas não consegui romper a barreira dos editais de produção, mesmo com um título mais vigoroso. A seguir vieram Castelar e as restaurações, para DVD, dos filmes anteriores.
Hoje, meu objetivo está intimamente relacionado – é claro – com uma boa noite de sono.